quinta-feira, 8 de março de 2012

Notas Acerca do Oito de Março

Orgulho feminino (agradecimentos à Lívia e ao primo dela pela idéia da foto)

Eu me lembro muito bem disso. De ter uns oito ou nove anos e ouvir estarrecido a história que a tia da escola contava à classe, a história da origem do dia internacional da mulher. A história era a seguinte: havia uma fábrica nos Estados Unidos, onde as mulheres lutavam pelos seus direitos. Então os homens donos do lugar trancaram as mulheres lá dentro e tocaram fogo em tudo. Morreram todas queimadas. Forte, né? Bem, nos anos seguintes eu pouco fiz pra superar essa versão da explicação da origem do 8 de março. Afinal, a estória é totalmente plausível, ainda mais num período industrial. Mas talvez seja mais que hora de pesquisar isso um pouquinho mais a fundo.


A minha professora se referia a um mito difundido nos anos 60, que conta que em Nova Iorque, em 1857, durante uma greve em uma fábrica, os patrões haviam incendiado um prédio com 129 funcionárias dentro. Mas, surpresa: não há registro histórico disso. É conversa. Essa tal greve nunca sequer existiu. A primeira menção à essa história aparece no jornal do partido comunista francês, em 1955, às vésperas do 8 de março. Em 1966 volta a aparecer num jornal em Berlim, na então Alemanha Oriental, onde se fala, pela primeira vez no mundo, de 129 mulheres queimadas vivas em Nova Iorque, em 1857. De onde surgiram essas histórias?


Pois é, a história é resultado de uma junção de outros três fatos ocorridos bem depois. O primeiro foi uma greve de costureiras em NY que durou de 22 de novembro de 1909 até 15 de fevereiro de 1910. Incríveis 13 semanas! No total, 500 fábricas de pequeno e médio porte aderiram à greve. Mas as condições de trabalhos não melhoraram muito, e era comum que os patrões trancassem portas pra galera não fazer horário de almoço, ou mesmo que cobrissem os relógios pros funcionários trabalharem mais. Aquilo era luta de classes, pura e simples.


A outra história rolou também em Nova Iorque, dia 25 de março de 1911. Devido a péssimas condições de uma fábrica de roupas (divisórias de madeira, tecido espalhado pra todo o lado), um incêndio matou 146 funcionários, tecelões e tecelãs. Como era costume, as portas estavam trancadas, pra que não se saísse para fazer horário de almoço e atrapalhasse a produtividade.

O incêndio da fábrica Triangle Shirtwaist Company, em 25 de março de 1911

[o terceiro fato eu comento logo em seguida]

Importante, antes de mais nada, é buscar as bases históricas da criação de um dia internacional da mulher. Em 1910, na Dinamarca, durante a II Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, já havia sido proposto a criação de tal data, para incentivar mulheres do mundo todo a seguir o exemplo das grevistas americanas. O dia da comemoração ficou indefinido, cada país podia escolher o que achava melhor. A resolução foi a seguinte:
“As mulheres socialistas de todas as nações organizarão um Dia das Mulheres específico, cujo  primeiro objetivo será promover o direito de voto das mulheres. É preciso discutir esta proposta, ligando-a à questão mais ampla das mulheres, numa perspectiva socialista.”

O dia internacional da mulher passa a ser celebrado em diversos países, em datas distintas. Importante salientar que se tratava de um dia de discussão acerca da luta socialista pra libertação das mulheres e pela conquista plena de cidadania.
E eis que estamos na Rússia, em 8 de março de 1917. 23 de fevereiro no calendário russo, 8 de março no gregoriano. Em meio à insatisfação geral do povo com o Czar, tecelãs e costureiras não dão ouvidos às recomendações do Partido e iniciam uma greve geral, que culminaria na Revolução de Fevereiro. Nas palavras de Trotsky:
“Em 23 de fevereiro (8 de março no calendário gregoriano) estavam planejadas ações revolucionárias. Pela manhã, a despeito das diretivas, as operárias têxteis deixaram o trabalho de várias fábricas e enviaram delegadas para solicitarem sustentação da greve. Todas saíram às ruas e a greve foi de massas. Mas não imaginávamos que este 'dia das mulheres' viria a inaugurar a revolução”.    
Ou seja, as mulheres socialistas foram as que primeiro saíram às ruas, dando início à Revolução Russa de 1917.  Portanto, o mito das mulheres queimadas vivas em 1857 é uma junção/confusão entre a greve de 1910, nos EUA; a de 1917, na Rússia e o incêndio de 1911, em Nova Iorque.

Nos anos de 1970, época em que a tensão capitalismo/comunismo estava em seu auge. Quando americanas começaram a fazer passeatas e reivindicar direitos iguais aos dos homens, era necessário um marco para a luta. Mas o impasse se impôs: como dizer aos americanos, programado para odiar tudo o que fosse comunista, de que o 8 de maio foi fruto da luta das mulheres socialistas? Ou de grevistas e socialistas americanos? Foi assim que o mito de 1957 surgiu. Mesmo com forte apelo emocional, essa nova genealogia suprimiu a luta socialista, os interesses de classe e a crença de que a libertação das mulheres viria com a libertação de todos os proletariados oprimidos, e vice versa.

Na Alemanha, cartaz convoca para a marcha do Dia das Mulheres, em 8 de março de 1914

Não vejo nisso nenhum plano diabólico pré-estabelecido, mas uma junção de casualidades e coincidências. Mas é uma pena que o mito tenha se firmado, apagando da memória histórica de homens e mulheres outras datas de greves e congressos socialistas que determinaram o Dia das Mulheres e seu caráter político.

 A ONU reconheceu o dia internacional da mulher somente em 1977. Infelizmente, basta abrir os olhos para ver o quanto nossa sociedade é machista, desde o nível mais rasteiro, como a alta taxa de estupro e violência doméstica contra a mulher, até um machismo mais sutil, como piadas e comentários na internet. Ainda há muito a se lutar.


Pra terminar, só queria comentar o quanto é triste ver no que se tornou essa data de celebração de luta socialista. Um dia em que políticos enviam rosas e mensagens que mais parece coisa de dia das mães, e em que idiotas ficam postando no facebook o pq de não existir o dia internacional do homem.

Aí mulherada, borá lutar, pô! 

[ah, pra quem quiser ler e saber mais sobre o tema, vale a pena ir aqui, ó: http://www.piratininga.org.br/publicacoes/mulher-miolo.pdf]


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